Galáxias canibais

O GEDAI publica o quadragésimo segundo texto da série ATRAVÉS DO UNIVERSO – coluna mensal do prof. Domingos Soares (Departamento de Física / UFMG). Conheça mais sobre o autor em sua página eletrônica.

Galáxias canibais

Domingos Soares

14 de setembro de 2022

As galáxias estão distribuídas no espaço cósmico de maneiras diversas. Algumas vezes elas estão muito distantes umas das outras. Quando em grupos, as galáxias podem interagir fortemente, e, em virtude desta interação, perder completamente a sua individualidade. Dois fenômenos podem ocorrer neste caso. A fusão, quando duas galáxias de tamanho comparável se juntam, fundindo-se em uma só, e o canibalismo galáctico, quando uma galáxia, literalmente, “engole” uma companheira de muito menor tamanho. Mostrarei a seguir alguns exemplos de canibalismo entre as galáxias, e descreverei como ocorre este fenômeno e algumas das características da galáxia canibal, que é, nos casos mais espetaculares, uma gigantesca galáxia!

Para começar vamos ver uma imagem extraordinária. Trata-se de uma galáxia canibal localizada no centro de um aglomerado de galáxias. A propósito, a maioria das galáxias canibais é encontrada nos centros de grandes aglomerados. O motivo é muito simples: é lá que se encontra “comida” em abundância. Vejam na figura a galáxia central do aglomerado de galáxias denominado Abell 3827. Este aglomerado está localizado a 1,5 bilhão de anos-luz. O que vemos na imagem era a situação há 1,5 bilhões de anos. Ou seja, hoje, muitas das galáxias vistas em sua periferia já terão sido canibalizadas!

O grande protagonista do fenômeno do canibalismo galáctico é a força da gravidade. A canibalização ocorre em duas etapas principais. Em primeiro lugar, a atração gravitacional da galáxia canibal age no sentido de arrancar as estrelas mais externas da galáxia alimento. A força da gravidade varia em intensidade através da galáxia alimento. Na sua parte mais próxima ela é maior, e é menor nas regiões mais afastadas. Este tipo de força é denominado “força de maré”. O seu nome vem de seu efeito mais comum, qual seja, as marés oceânicas na Terra, provocadas principalmente pela atração gravitacional da Lua sobre os oceanos. Pois bem, as forças de maré arrancam as estrelas externas do “alimento”, tanto da parte mais próxima quanto da parte mais afastada.

Figura 1

Galáxia central do aglomerado de galáxias Abell 3827. As cores são artificiais e representam a variação do brilho da galáxia. Os cinco “caroços” amarelos localizados no centro da imagem são os restos de cinco galáxias, as quais foram canibalizadas por esta galáxia gigante. Note as inúmeras pequenas galáxias localizadas ao redor do núcleo da galáxia gigante. O destino delas é o mesmo: serão “comidas” pela canibal (Michael J. West, ESO).

As estrelas arrancadas do alimento poderão ser agregadas à galáxia canibal ou ser arremessadas em altas velocidades na direção do meio intra-aglomerado. A galáxia canibal cresce em massa e brilho e o espaço existente entre as galáxias do aglomerado é povoado com estrelas solitárias, originadas das galáxias canibalizadas. A galáxia alimento fica reduzida à sua região central, a qual possui uma densidade maior de estrelas. Elas tornam-se progressivamente em um “caroço” estelar. E é quando se torna mais importante a segunda etapa do canibalismo.

Em segundo lugar, então, os núcleos densos das pequenas galáxias vão progressivamente perdendo energia orbital. Esta perda de energia ocorre devido à sua interação gravitacional com as estrelas da galáxia canibal. O alimento orbita por um meio onde existem muitas estrelas. Ocorre uma espécie de força de atrito, que freia o seu movimento, retirando energia da sua órbita. Esta força de atrito não é uma força de contacto direto. Ela é uma força dinâmica de origem gravitacional. O destino do alimento é a região mais central da galáxia canibal. Estes são os caroços que aparecem na imagem de Abell 3827.

Veremos a seguir outro exemplo surpreendente de canibalismo galáctico. Ele ocorreu na galáxia elíptica gigante NGC 1316, localizada na constelação da Fornalha. A galáxia está localizada a 70 milhões de anos-luz. A sua luz partiu em nossa direção quando os dinossauros ainda andavam pela Terra, e só agora, devido à sua imensa distância, chegou aos nossos telescópios!

Figura 2

Imagem CCD de NGC 1316 obtida pelo telescópio VLT (“Very Large Telescope”), de 8,2 metros de abertura, do Observatório Europeu Austral (ESO), localizado nos Andes chilenos. Note as nuvens escuras de poeira interestelar na região central da galáxia. Esta poeira veio de uma galáxia espiral canibalizada por NGC 1316 nas últimas centenas de milhões de anos (M. Della Valle, R. Gilmozzi e R. Viezzer, ESO).

NGC 1316 é uma poderosa fonte de ondas de rádio. Esta atividade energética está associada diretamente ao seu canibalismo. O gás e a poeira engolidos pela canibal caem em direção ao centro galáctico e lá ocorre o seu colapso violento em direção a uma usina energética compacta central. O melhor candidato para esta usina energética é um “buraco negro”, um hipotético habitante do cosmos cujas vizinhança é caracterizada por um altíssimo campo gravitacional. A força gravitacional resultante deste campo atrai o material canibalizado, o qual atinge velocidades elevadíssimas, passando a irradiar em vários comprimentos de onda, inclusive em ondas de radiofrequência. NGC 1316 é conhecida como a radiofonte Fornalha A. A imagem seguinte mostra a dramaticidade da situação.

Figura 3

Imagem composta de NGC 1316 mostrando a sua emissão na faixa óptica (luz visível) e na faixa de rádio. A radioemissão aparece na forma de lobos laterais, mostrados na cor laranja. Esta emissão é causada por jatos de partículas eletricamente carregadas arremessadas para fora, a partir do caroço energético central da galáxia. Note a pequena galáxia na parte de cima de NGC 1316, cujo destino, nos próximos milhões de anos, é ser canibalizada pela gigante elíptica (National Radio Astronomy Observatory, Estados Unidos).

O canibalismo galáctico se manifesta de forma mais espetacular quando ocorre em galáxias gigantes, como vimos. Mas ele pode ocorrer sempre que uma galáxia, mesmo de tamanho comum, engole uma companheira bem menor, ou seja, uma galáxia satélite. É o que parece estar acontecendo com a nossa vizinha, a galáxia de Andrômeda (M31). Os astrônomos detectaram, através de observações detalhadas, detritos estelares espalhados nas proximidades da galáxia.

E mesmo a nossa Via Láctea pode estar em pleno processo de canibalização de seus satélites mais próximos, a Grande Nuvem e a Pequena Nuvem de Magalhães! Já foram observados detritos gasosos, formando extensos filamentos, os quais emanam das Nuvens em direção à Via Láctea. Estes filamentos gasosos seriam indicações de que um processo de canibalização está em pleno andamento. Daqui a algumas centenas de milhões de anos, portanto, poderemos não ter mais as Nuvens de Magalhães embelezando os nossos céus!

Um pouco mais:

==================
Domingos Soares
FLORESTA COSMOS
==================