ATRAVÉS DO UNIVERSO: Os universos de Kapteyn e Shapley

O GEDAI publica o trigésimo terceiro texto da série ATRAVÉS DO UNIVERSO, coluna mensal do prof. Domingos Soares (Departamento de Física / UFMG). Conheça mais sobre o autor em sua página eletrônica.

Os universos de Kapteyn e Shapley

Domingos Soares

14 de junho de 2021

O Sol está na galáxia da Via Láctea também chamada Galáxia, com “g” maiúsculo. Então, o estudo da Galáxia é feito através de observações de dentro do próprio sistema. A partir delas podemos imaginar como seria a Galáxia se observada de fora. A figura 1 mostra a galáxia M83, a qual tem muitas características da Via Láctea, a saber, os braços espirais irregulares e fracionados, a região central com um bojo estelar de tamanho médio e a insinuação de uma pequena barra estelar no núcleo.

Figura 1

Se pudéssemos observar a Via Láctea de fora, ela não seria muito diferente desta galáxia, catalogada como M83, o “Cata-vento Austral”. Os braços espirais, um tanto irregulares, podem ser vistos dando a impressão de um cata-vento. Esta imagem foi obtida com um instrumento denominado “Wide Field Imager”, ou, “Imageador de Campo Amplo”, montado num telescópio de 2,2 m de abertura, localizado no Chile, no Observatório Europeu Austral, ESO, na sigla em inglês. A propósito, M83 está à disposição em nossos céus!

Dois exploradores pioneiros e notáveis da estrutura e da dinâmica galáctica foram o holandês Jacobus C. Kapteyn (1851-1922) e o americano Harlow Shapley (1885-1972). O conhecimento que temos hoje sobre a nossa galáxia iniciou-se com os seus estudos nas primeiras décadas do século XX.

Figura 2

À esquerda, Jacobus C. Kapteyn aos 70 anos e Harlow Shapley aos 62 anos.

Kapteyn começou a estudar a Galáxia de maneira sistemática e quantitativa, através da medida das distâncias e dos movimentos das estrelas. Ele contou com a colaboração de vários outros astrônomos, que contribuíram com as observações. A adesão destes astrônomos, tanto do hemisfério norte, quanto do sul, deveu-se à grande habilidade diplomática de Kapteyn. Para organizar o empreendimento, ele dividiu o céu em 206 “Áreas Selecionadas”, com tamanhos variados dependendo da densidade de estrelas. As distâncias eram obtidas através da paralaxe trigonométrica e as velocidades através de medidas de movimento próprio. Foi um trabalho de várias décadas, que culminou com o estabelecimento do chamado “universo de Kapteyn”, que era um mapa de nosso sistema estelar. Devemos lembrar que as galáxias ainda não haviam sido “descobertas”, o que só ocorreria cerca de dez anos depois da morte de Kapteyn, através do trabalho e da sistematização de trabalhos anteriores realizada por Edwin Hubble (1889-1953).

A figura 3 mostra a Galáxia representada por elipsoides de densidade constante, que se ajustam às observações realizadas por Kapteyn e seus colaboradores. Inicialmente o Sol é suposto estar no centro do sistema de elipsoides, mas posteriormente Kapteyn concluiu que ele deveria estar fora do centro em virtude das observações de movimento das estrelas. O trabalho original de Kapteyn de 1922 está disponível neste local.

Figura 3

O universo de Kapteyn. As densidades de estrelas foram ajustadas a elipsoides para facilitar o cálculo do campo gravitacional. O Sol está no centro do sistema e posteriormente foi colocado um pouco fora do centro, para ser consistente com observações cinemáticas. Este estudo de Kapteyn foi publicado em 1922, o ano de sua morte (1 parsec = 3,26 anos-luz).

(Uma curiosidade pessoal: a minha dissertação de mestrado na UFMG foi orientada pelo astrônomo argentino-brasileiro Ramon Julian Quiroga (falecido em 2018). Ele era radioastrônomo, observador e estudioso da Via Láctea. O tema de meu trabalho foi exatamente o estudo das forças gravitacionais na região próxima do Sol, o que havia sido feito pela primeira vez por Kapteyn. Quiroga queria testar a sua ideia de que havia uma componente ondulatória na cinemática estelar local e eu fui encarregado de parte deste trabalho. Para isto, estudei profundamente os trabalhos de Kapteyn, inclusive este de 1922. O resultado é que, após a conclusão de meu mestrado em 1982, com a perspectiva de um doutoramento no exterior, eu optei por realizá-lo no Instituto Astronômico Kapteyn, da Universidade de Groningen, Holanda. Eu havia me entusiasmado tanto com o trabalho de Kapteyn que quis andar por onde Kapteyn andou! E valeu a pena.)

Mas Kapteyn cometeu um erro fundamental. Ele desconsiderou os efeitos da absorção interestelar em suas observações, o que comprometeu todo os seus procedimentos de determinação da distribuição das estrelas. Por isto o seu universo não reproduzia a Via Láctea real e o Sol não estava colocado na posição correta. Por outro lado, os seus cálculos da dinâmica na vizinhança solar estavam essencialmente corretos. Quem quiser se aventurar pelos detalhes técnicos do universo de Kapteyn pode ver um resumo deles no artigo Lessons From the Milky Way: The Kapteyn Universe, de autoria do astrônomo holandês Piet van der Kruit.

Um desenvolvimento extraordinário veio então com os trabalhos do americano Harlow Shapley. Ele mostrou que os aglomerados estelares globulares (conjuntos de centenas de milhares de estrelas distribuídas esfericamente, como uma bola) se espalhavam aleatoriamente ao redor de um ponto da Via Láctea, que seria o seu centro. Ele concluiu isto determinando observacionalmente as distâncias até os aglomerados, utilizando o método, recém descoberto por Henrietta Leavitt (1868-1921), das estrelas variáveis Cefeidas. Em resumo, ele identificava Cefeidas nos aglomerados — como, por exemplo, Ômega de Centauro mostrado abaixo —, media os seus períodos de variação de brilho, e daí chegava às distâncias (o método das variáveis Cefeidas para a determinação de distâncias está descrito no Através do Universo do mês de outubro de 2017).

O aglomerado globular Ômega de Centauro (ω Cen ou NGC 5139), de nossa galáxia, possui cerca de 10 milhões de estrelas, a maioria delas muito mais velhas do que o Sol. As estrelas se distribuem no formato de uma bola ou glóbulo; ω Cen possui um diâmetro de 150 anos-luz. A Via Láctea possui mais de 150 aglomerados globulares espalhados em um halo esférico em volta do disco galáctico (APOD:15jun11).

O universo de Shapley possui dimensões muito maiores do que o universo de Kapteyn e coloca o Sol na periferia do sistema. Apesar de também ter desprezado a absorção interestelar, Shapley chegou a um quadro muito mais realista da Galáxia. O maior astrônomo holandês, Jan Hendrik Oort (1900-1992), fez o esquema mostrado na figura 5, o qual compara as dimensões dos universos de Kapteyn e Shapley. Note que o Sol está na periferia do universo de Shapley e no centro do universo de Kapteyn.

Figura 5

O universo de Shapley, representado pela distribuição de aglomerados globulares, comparado ao universo de Kapteyn, à esquerda. Note que o Sol, aproximadamente no centro do universo de Kapteyn, está na periferia do universo de Shapley. Esta figura foi feita pelo astrônomo holandês Jan Hendrik Oort. O eixo horizontal tem a legenda “lichtjaren”, em holandês, que em português significa “anos-luz”.

De acordo com Shapley o Sol se localiza a 60.000 anos-luz (≅ 20 kpc) do centro do sistema. Ele superestimou as distâncias dos aglomerados globulares porque o método das variáveis Cefeidas estava ainda mal calibrado e também desconsiderou o efeito da absorção interestelar na luz das estrelas. O quadro geral, no entanto, estava correto.

Kapteyn e Shapley acertaram e erraram em suas pesquisas astronômicas. Cada um a seu modo contribuiu um pouco para chegarmos ao conhecimento que temos hoje de nosso lar no cosmos, a galáxia da Via Láctea.

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Domingos Soares
FLORESTA COSMOS
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