ATRAVÉS DO UNIVERSO: A nuvem — e o turbilhão — de Oort

domingos-150x150O GEDAI publica o vigésimo quinto texto da série ATRAVÉS DO UNIVERSO, coluna mensal do prof. Domingos Soares (Departamento de Física / UFMG). Conheça mais sobre o autor em sua página eletrônica.

A nuvem — e o turbilhão — de Oort

 

Domingos Soares

14 de agosto de 2020

Apresento a tradução do conto de ficção científica “The Oort crowd” do britânico Ken MacLeod, publicado na revista Nature, vol. 406, de 13 de julho de 2000. O conto, de inspiração astronômica, exibe noções contemporâneas de astrobiologia, ecologia e de preservação da vida. Primeiro falarei sobre a “nuvem de Oort”, que, claramente, inspirou o escritor.

A nuvem de Oort é uma coroa esférica, centrada no Sol, situada nos limites do sistema solar. Esta coroa é constituída por planetesimais, pequenos corpos sólidos, que sobraram da formação do sistema solar interior. Ela recebe este nome porque a sua existência foi primeiramente proposta pelo astrônomo holandês Jan Hendrik Oort (1900-1992). A nuvem de Oort é considerada como o local de onde se originam os cometas e representa o limite final da influência gravitacional do Sol. Ela está localizada a aproximadamente 1 ano-luz do Sol, ou seja, a um quarto da distância até Proxima Centauri, a estrela mais próxima do Sol.

O autor do conto “O turbilhão de Oort” (The Oort crowd em inglês) faz um trocadilho com Oort cloud, o termo em inglês para a nuvem de Oort. Na impossibilidade de repetir, em português, o trocadilho feito pelo autor, optei pela tradução livre do título, o qual me parece condizente com o teor do conto. O conto apresenta uma discussão da questão da vida no universo, especificamente no sistema solar, e neste contexto defende uma atitude humana ecologicamente responsável para a preservação e respeito à vida em todas as formas.

Uma região semelhante, mas mais próxima do Sol é também mencionada no conto. Trata-se do cinturão de Kuiper, que se localiza desde a órbita de Netuno (a 30 UA do Sol) até aproximadamente 50 UA. A sua existência foi proposta pelo astrônomo holandês Gerard Kuiper (1905-1973). O cinturão de Kuiper é também constituído de pequenos corpos que restaram da nebulosa protossolar. Ele está bem mais próximo do Sol do que a nuvem de Oort, que está a mais de 60.000 UA (aproximadamente 1 ano-luz).

A seguir, a tradução. O texto original The Oort crowd está publicado em Nature, vol. 406, 13 de julho de 2000.

 

O turbilhão de Oort
Os deuses realmente estão se movimentando de formas misteriosas.

Ao entrar no primeiro ano do 23o século (ou o último ano do 22o — certos debates nunca desaparecem) olhamos com satisfação para os triunfos da ciência e da tecnologia nos primeiros dois séculos do terceiro milênio. Os progressos na medicina, na biotecnologia, nas comunicações, na engenharia atmosférica foram celebrados mais do que adequadamente em outro local. Eles são familiares para o fazendeiro mais isolado, nas pedras mais nuas da Antártida. Mas em importância de longo prazo para as esperanças humanas, nada pode se comparar à descoberta dos deuses.

A palavra ‘deuses’ é deliberadamente usada. As especulações iniciais da humanidade sobre quaisquer inteligências sobre-humanas com as quais ela pode compartilhar o Universo são, paradoxalmente, mais relevantes para a nossa situação concreta do que as previsões de contato alienígena do gênero outrora popular da ficção científica. Deve-se admitir, contudo, que alguns de seus adeptos (ver, por exemplo, Boyce, 1998, http://www.et-presence.ndirect.co.uk) alcançaram parte da verdade.

Aquela verdade, como todos sabemos, é que uma fração grande, indeterminada e (por uma boa razão) indeterminável dos corpos do cinturão de asteroides, do Cinturão de Kuiper e da Nuvem de Oort são os sítios de vida inteligente complexa. A(s) trajetória(s) evolucionária(s) precisa(s) de microrganismos extremófilos para a inteligência, aparentemente evitando a organização multicelular, permanece desconhecida e talvez (de novo, por uma boa razão) incognoscível. As simulações computacionais deram resultados interessantes, apesar de inconclusivos (Chang-Hoskins, 2197, apresenta um resumo interessante).

Aqueles dentre os nossos leitores que se beneficiaram dos avanços da medicina devem se lembrar, e os nossos leitores mais jovens podem facilmente se informar, da excitação que cercou a primeira descoberta, acidental, de uma inteligência ET em 2031. As primeiras transferências do prospector de asteroides da Fundação Gates revelaram, não a opulência potencial de recursos esperada em um condrito carbonáceo, mas uma estrutura interior complexa variadamente descrita como ‘cristalina’, ‘fractal’ e ‘orgânica’. Felizmente para a transparência científica, a operação de perfuração foi transmitida ao vivo pela web, e assim que as fotografias lentamente se sucederam nas telas de umas poucas centenas de milhares de entusiastas espaciais, as notícias se espalharam pela rede mais rápido do que um vírus.

Naqueles primeiros e-mails e postagens apressados e mal digitados podemos ver — a partir das referências às estruturas como ‘o computador alienígena’ ou ‘Cidade Asteróide’ ou mesmo como ‘a nave espacial’ — a profundidade do equívoco inicial. Longe de ter sido construída por seres essencialmente semelhantes a nós, a própria estrutura era o alienígena, ou a civilização — a natureza e o número de centros de consciência em seu interior permanecem controversos. E ela não estava nem sozinha nem isolada.

Bilhões de anos de ‘ajuste’ evolucionário deram às mentes cometárias uma sensibilidade requintada à emissão eletromagnética dos processos químicos e físicos de uns e de outros. As suas comunicações são, quando examinadas, tão detectáveis quanto incompreensíveis. Alguns dos corpos maiores de Oort parecem agir como relés, estendendo a rede de comunicações através de distâncias solares e possivelmente interestelares. (Como é sabido as tênues extensões externas da Nuvem de Oort intersectam aquelas de sua equivalente centauriana.)

Apesar de extenuantes esforços, nenhuma comunicação humana com as mentes extraterrestres foi estabelecida (os resultados reivindicados por Lunan, 2049, são no mínimo ambíguos). Elas estão, para nós, precisamente na posição postulada por Epicuro, serenas nos espaços entre os mundos.

Estes deuses, embora indiferentes, não são passivos. Um controle sutil sobre suas liberações de gases, durante períodos muito longos, resulta em mudanças orbitais. Processos mais rápidos ocorrem entre os asteroides. Um estudo detalhado dos Objetos Próximos da Terra recentes e históricos sugere que as órbitas de pelo menos alguns OPTs foram o resultado de um propósito consciente.

Em vista do que foi dito, parece, em retrospectiva, lamentável que a primeira sonda para a Nuvem de Oort e além, lançada em 2031, devesse ter usado como seu meio inicial de propulsão uma vela de plasma que consistia de gás ionizado dentro de uma ‘bolha magnética’ de milhares de quilômetros de largura, e como seu meio secundário um protótipo de um ‘aríete de cavidade eletromagnética’ sugando enormes quantidades de matéria interestelar e cometária. As mudanças subsequentes no volume e na intensidade da comunicação intercometária, e nas órbitas de numerosos cometas e asteroides, não podem ser explicados pelos efeitos físicos de sua passagem. Elas só podem ser consideradas como uma resposta.

O efeito da descoberta dos deuses sobre a sociedade humana tem sido positivo. Excluídos de muitos dos recursos de fontes espaciais outrora consideradas desocupadas, nós nos voltamos para um uso menos perdulário das fontes de nosso próprio planeta. As expectativas de John Stuart Mill, em seus famosos capítulos sobre o “estado estacionário” e “o provável futuro das classes trabalhadores”, foram em grande parte concretizadas.

Mas, enquanto as nossas associações astronômicas e de defesa espacial continuam suas indispensáveis observações celestes, pode haver o risco de se ignorar um perigo mais próximo de casa. Não há qualquer razão de se supor que a consciência extremofílica esteja confinada a corpos interplanetários menores. Talvez a maioria da biomassa da Terra consista de extremófilos subterrâneos.

Preste atenção no chão.

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Domingos Soares
FLORESTA COSMOS
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