ATRAVÉS DO UNIVERSO: Aprendendo de um cometa – Halley, 1986

domingosO GEDAI publica o vigésimo primeiro texto da série  “ATRAVÉS DO UNIVERSO”, coluna mensal do prof. Domingos Soares (Departamento de Física/UFMG). Conheça mais sobre o autor em sua página eletrônica. Veja os textos anteriores da série clicando neste link.

Aprendendo de um cometa – Halley, 1986

Domingos Soares

14 de março de 2020

Em 1986, no início do ano, o mais famoso dos cometas, o cometa de Halley, retornou às proximidades da Terra, após uma ausência de 76 anos, que é o seu período orbital aproximado. Ele foi visto a olho nu de vários pontos da Terra. Contarei um episódio sobre esta aparição, o qual está relacionado à ocasião em que eu realizava o doutoramento no Instituto Astronômico Kapteyn da Universidade de Groningen, Holanda.

Os astrônomos e técnicos do Instituto Kapteyn são frequentes visitantes de La Palma, que é uma ilha pertencente ao arquipélago espanhol das Ilhas Canárias, cuja capital é Santa Cruz de La Palma. O ponto culminante da ilha está a 2426 m, no pico denominado Roque de los Muchachos, onde está situado o Observatório do Roque de los Muchachos, que possui vários telescópios europeus e um americano. Numa das visitas, por volta de março de 1986 (primavera no hemisfério norte), Theo Jurriens, técnico do Instituto Kapteyn, obteve uma bela foto do cometa de Halley. A foto foi tão apreciada pela comunidade do Kapteyn que acabou servindo de ilustração para o cartão de natal daquele ano, mostrado na figura abaixo.

FIGURA

halley-natal
Cartão de natal do Instituto Astronômico Kapteyn, de 1986, com a foto do cometa de Halley tomada por Theo Jurriens, na primavera boreal de 1986, em La Palma (latitude ≈ +28° 45′). O tempo de exposição foi de 2 minutos. O texto em holandês diz “Bom Natal e um Feliz Ano Novo”.

Prof. Hugo Van Woerden, então diretor do Instituto, apresentou um curioso desafio: quem apresentasse o maior número de conclusões a partir da foto ganharia um prêmio! Após a premiação, o Prof. Hugo van Woerden apresentou as suas próprias deduções, que mostro a seguir. Os meus comentários aparecem após a sigla DS.

Prof. Hugo van Woerden: Foto do céu em La Palma

1. A inclinação das trajetórias estelares, subindo para a direita, mostra que as estrelas estão nascendo, não se pondo, logo estamos de frente para o Leste (aproximadamente). (Isto é válido para o hemisfério N).

DS: Verifique num planetário eletrônico (e.g., Stellarium) ou pela observação noturna cuidadosa que as trajetórias das estrelas, quando nascem, são inclinadas para a esquerda, no hemisfério sul.

2. O comprimento das trajetórias estelares é certamente mais do que 1 mm. Equivalente a 2 min = 0,°5. Logo a escala da foto: 1° = 2 ou 2,5 mm. A área mostrada, 5 × 12 cm, é então aproximadamente 20° × 50°.

DS: O tempo de exposição é conhecido, 2 min, mas também pode ser deduzido aproximadamente da foto (item 6). 24 horas correspondem a 360°, daí 2 min = 0,°5. Note que 5 × 12 cm é o tamanho real do cartão de natal em papel.

3. O trapézio evidente no lado inferior direito possui uma diagonal LO de aproximadamente 17 mm ∼ 7 or 8°.

DS: LO ≡ Leste-Oeste.

4. Há um clarão brilhante no centro da fotografia, ligeiramente ascendente para a direita. Isto não pode ser o crepúsculo, que seria mais homogêneo ao longo do horizonte. Ele pode bem ser a luz zodiacal. Neste caso o trapézio estaria algo como 10° ou 15° abaixo da eclíptica. O clarão não é de Santa Cruz!

DS: A luz zodiacal é um clarão difuso causado pela reflexão da luz solar em partículas de poeira espalhadas no plano da eclíptica, o plano das órbitas planetárias. Ela tem este nome porque as constelações do zodíaco estão projetadas na abóbada celeste ao longo da eclíptica, que é a trajetória aparente do Sol visto da Terra. Santa Cruz de La Palma é a capital de La Palma.

5. Como a fotografia foi feita na primavera e como a luz zodiacal é vista, deve ser pouco antes do amanhecer e a ascensão reta deve ser aproximadamente 18 ou 20 horas. Baseado nisto uma pesquisa num atlas celeste é possível.

DS: Note que a primavera do hemisfério norte se inicia em 20 de março. Para obter as 18 ou 20 horas, considere a observação a ≈ 6 horas da manhã e calcule a ascensão reta de um ponto no zênite (ângulo horário nulo). Consulte para isto a seção 3 do artigo Cálculo da culminação de um astro.

6. Esta pesquisa apoia fortemente a identificação do trapézio com σ-τ-ζ-φ Sagittarii. A diagonal τ-φ tem aproximadamente 5°; portanto 1,2 mm ∼ 0,°35, sugerindo uma exposição de apenas 80 – 90 segundos. O padrão das estrelas, contudo, é convincente.


DS: Calcule o tempo de exposição considerando que em 24 horas a abóbada celeste gira 360°. Em quanto tempo girará 0,°35?

7. A estrela brilhante um pouco acima da crista da montanha, a 22 mm do lado esquerdo, então parece ser α Capricorni. Entre α Cap e λ Sgr, eu meço 97 mm correspondente a θ = 29 graus [calculado de cos θ = cos(90 – δ1) cos(90 – δ2) + sen(90 – δ1 ) sen(90 – δ2)cos(α1 – α2)], logo 1° = 3,3 mm; 1,2 mm ∼ 0,°36.

DS: Antes de localizar α Cap na figura, note que há algumas lâmpadas rentes ao topo da montanha, no lado esquerdo. As lâmpadas não apresentam as trajetórias típicas das estrelas. Prof. van Woerden consultou um catálogo para obter as coordenadas (α, δ) de α Cap e λ Sgr e usou a fórmula de distância entre dois pontos da trigonometria esférica para calcular a distância angular entre as duas estrelas. Desta forma ele confirma a escala da foto obtida no item 6. Procure estas estrelas numa carta celeste para identificá-las com segurança na figura.

8. A identificação da luz zodiacal é confirmada; a eclíptica passa pelo meio da figura subindo para a direita. No lado superior direito, alguns aglomerados estelares em Sagitário (não distantes do centro galáctico) são visíveis. O cometa no horizonte está em α ∼ 19h 45m, δ ∼ 25,°5. O cometa de Halley passou por este local em 20 de março de 1986.

DS: A partir das estrelas identificadas em 6 e 7, o Prof. van Woerden confirma a localização da eclíptica e consequentemente da luz zodiacal. As coordenadas do Halley foram obtidas por interpolação, utilizando-se as coordenadas de α Cap e λ Sgr, já conhecidas no item 7.

Mais detalhes sobre esta história — e sobre outras relacionadas à minha passagem pelo Instituto Astronômico Kapteyn — estão descritos no artigo escrito em homenagem ao Prof. Hugo van Woerden intitulado Learning from Attitudes e disponível neste local.

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Domingos Soares
FLORESTA COSMOS
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