ATRAVÉS DO UNIVERSO: Hubble, Shapley e os “universos-ilhas”

domingos-150x150O GEDAI publica o décimo primeiro texto da série  “ATRAVÉS DO UNIVERSO”, coluna mensal do prof. Domingos Soares (Departamento de Física/UFMG). Conheça mais sobre o autor em sua página eletrônica. Veja os textos anteriores da série clicando neste link.

Hubble, Shapley e os “universos-ilhas”

Domingos Soares

14 de outubro de 2018

Edwin Powell Hubble (1889-1953), o “Navegador das Nebulosas”, foi o astrônomo que “descobriu” as galáxias, que ele insistia em chamar de “nebulosas extragalácticas”, por causa de uma rixa profissional e pessoal, que manteve até a morte, com o também astrônomo Harlow Shapley (1885-1972).

A descoberta das galáxias, apenas uma das múltiplas facetas do trabalho astronômico de Hubble, foi a sua empreitada maior, ponto final no “Grande Debate” que vinha se arrastando há muitos anos sobre a verdadeira natureza das nebulosas, especialmente das nebulosas espirais. A situação atingira o seu clímax em 1920, com a realização de um debate entre os renomados astrônomos da época Harlow Shapley, mencionado acima, e Heber Curtis (1872-1942), a respeito da natureza das nebulosas espirais, em última instância, a respeito das dimensões do universo. Shapley defendia que as nebulosas espirais eram objetos próximos, pertencentes à própria galáxia da Via Láctea.

A hipótese dos universos-ilhas surgiu em meados do século XVIII e o seu mais famoso defensor é o filósofo alemão Immanuel Kant (1724-1804). A ideia é a de que as estrelas poderiam estar associadas, i.e., ligadas pela atração gravitacional mútua, em sistemas independentes da Via Láctea. E já haviam muitos candidatos a universos-ilhas, especialmente as famosas nebulosas espirais. É claro que a comprovação desta hipótese dependia de um dado observacional fundamental, a distância até o universo-ilha. Quer dizer, se esta distância fosse muito maior que as dimensões da Via Láctea, então estaria demonstrado que os universos-ilhas — as nebulosas — eram sistemas remotos e independentes.

A determinação de distância em astronomia sempre foi e sempre será um problema fundamental, cuja solução é necessária para a comprovação das mais diversas hipóteses e teorias. Não foi diferente aqui e a discussão se arrastou por dezenas de anos devido à falta de conhecimento da distância até as nebulosas espirais. A situação começou a melhorar apenas no século XIX, quando em 1838 o matemático e astrônomo alemão Friedrich Wilhelm Bessel (1784–1846) mediu a primeira paralaxe anual de uma estrela — 61 Cygni, uma das mais próximas da Terra — obtendo assim pela primeira vez a distância precisa até uma estrela. Isto não resolveu por si só o problema das distâncias às nebulosas, mas constituiu-se no primeiro degrau de uma escada muito importante, a escada de distâncias, que eventualmente levou Hubble até aos píncaros cósmicos de então, as nebulosas espirais.

De degrau em degrau, Hubble chegou ao degrau das variáveis Cefeidas, que lhe permitiu a determinação das distâncias até três galáxias do Grupo Local: NGC 6822 (galáxia de Barnard, em 1925), M33 (galáxia do Triângulo, em 1926) e M31 (galáxia de Andrômeda, em 1929). O relato destas descobertas está em seu livro The Realm of the Nebulae (“O Reino das Nebulosas”), de 1936, nos capítulos IV (Distances of Nebulae) e VI (The Local Group).

À direita, NGC 6822 (galáxia de Barnard), ao centro, M33 (galáxia do Triângulo) e M31 (galáxia de Andrômeda).

Este, portanto, foi o ponto final do Grande Debate de que falamos acima.

Mas há um detalhe em tudo isso. Acompanhando a hipótese dos universos-ilhas havia uma outra ideia, — um apêndice conceitual — denominada hipótese das galáxias comparáveis. Passemos a palavra ao próprio Hubble. À página 96 do Realm lemos:

(…) the theory of island universes seemed to be established beyond reasonable doubt.
(…) a teoria dos universos-ilhas pareceu estar estabelecida acima de qualquer dúvida razoável.

The theory had taken two forms. “Island universes” implied merely that the nebulae were independent stellar systems, scattered through extragalactic space. “Comparable galaxies” carried the additional implication that the dimensions of nebulae were more or less comparable with those of the galactic system itself.

A teoria tinha tomado duas formas. “Universos-ilhas” implicava meramente que as nebulosas eram sistemas estelares independentes, espalhados pelo espaço extragaláctico. “Galáxias comparáveis” trazia a implicação adicional de que as dimensões das nebulosas eram mais ou menos comparáveis àquelas do próprio sistema galáctico.

Na raiz de toda esta polêmica estava Harlow Shapley, contemporâneo — e, podemos arriscar, desafeto de Hubble (cf. Edwin Hubble, Mariner of the Nebulae, de Gale Christianson e COSMOS:21out11). Pois bem, Shapley havia determinado o diâmetro da Via Láctea (o sistema galáctico, “galactic system”, como aparece no texto de Hubble) em 300.000 anos-luz, baseado na distribuição de seus aglomerados globulares. Se as dimensões das nebulosas fossem comparáveis, as distâncias implicadas, em virtude de suas dimensões aparentes no céu, seriam tão grandes que estrelas “novas” — estrelas extraordinariamente brilhantes — que eram nelas observadas deveriam ter brilhos intrínsecos absurdamente maiores do que as novas observadas na Via Láctea. E isto não era facilmente assimilado pela comunidade astronômica contemporânea. Em determinado ponto chegou-se até a pensar — Realm, página 98 — que

(…) if nebulae were island universes, the galactic system was a continent.
(…) se as nebulosas eram universos-ilhas, o sistema galáctico era um continente.

No entanto, o assunto foi logo resolvido após uma revisão da determinação do diâmetro da Via Láctea, que foi reduzido para a metade ou até um terço do valor original, e pela determinação do diâmetro da nebulosa espiral de Andrômeda, M31, através do mesmo método dos aglomerados globulares. M31 mostrou-se, de fato, comparável à Via Láctea. Os universos-ilhas, portanto, como foi admitido na época, eram comparáveis ao nosso sistema galáctico. Novamente Hubble, página 99:

It is not impossible that the galactic system as viewed from M31 covers an area in the sky comparable with that of the spiral as seen from the galactic system.
Não é impossível que o sistema galáctico se visto de M31 cubra uma área do céu comparável àquela da espiral se vista do sistema galáctico.

É importante salientar que a questão das “galáxias comparáveis” era relevante então, quando as galáxias estavam justamente no processo de serem “descobertas”. Hoje, e muito graças ao trabalho posterior do próprio Hubble, na classificação morfológica das galáxias, sabemos que elas existem em tamanhos e formas variadas. Existem desde galáxias anãs — mil vezes menores que a Via Láctea — até gigantescas galáxias, nos centros de aglomerados de galáxias, cujos diâmetros são comparáveis à distância da Via Láctea a M31, cerca de 2.500.000 anos-luz.

=========================
Domingos Savio de Lima Soares
FLORESTA COSMOS
=========================