A escuridão da noite

O GEDAI publica o quadragésimo primeiro texto da série ATRAVÉS DO UNIVERSO – coluna mensal do prof. Domingos Soares (Departamento de Física / UFMG). Conheça mais sobre o autor em sua página eletrônica.

A escuridão da noite

Domingos Soares

12 de agosto de 2022

Por que o céu é escuro à noite? O que este simples fato nos ensina sobre o universo em que vivemos?

“— Ora, o céu é escuro à noite porque o Sol está iluminando o outro lado da Terra! O que isto tem a ver com a totalidade do universo em que vivemos?”, alguém poderia muito apropriadamente argumentar.

Mas, se o universo é infinito e possui infinitas estrelas e galáxias, haverá certamente uma estrela em qualquer direção para a qual olharmos. A área que o Sol ocupa no céu é 180.000 vezes menor que a área de todo o céu. Desta forma deveríamos esperar que o céu brilhasse com a intensidade de 180.000 sóis, mesmo à noite! Seria impossível a nossa vida no interior de tão extraordinária fornalha!

Sendo assim torna-se perfeitamente razoável a questão: “— Por que o céu, num universo infinito em extensão e com infinitas estrelas, é escuro à noite?”

A escuridão do céu noturno, nos termos do parágrafo anterior, é conhecida na literatura científica como o “paradoxo de Olbers”. Este nome deve-se ao médico e astrônomo alemão Heinrich Olbers (1758-1840), que em 1823 chamou a atenção para a questão, e apresentou uma possível solução — que logo se revelou falha.

O problema é mais antigo, no entanto. Não foi Olbers o primeiro a levantar a questão. Merece menção o grande astrônomo Johannes Kepler (1571-1630), provavelmente o primeiro a propor este problema. Galileu Galilei (1564-1642), o grande astrônomo italiano, apontou, pela primeira vez, a recém-inventada luneta para o céu, em 1609. Entre outras grandes descobertas, ele logo verificou que a Via Láctea era, na verdade, constituída por grande número de estrelas. Kepler, que acreditava num universo finito, argumentou, então, que a escuridão do céu noturno era uma evidência de que ele estava com a razão, isto é, o universo era de fato finito. Veremos a seguir que também Kepler estava enganado. A solução do “paradoxo de Olbers” não exclui a possibilidade de um universo infinito.

Figura 1. Imagem obtida pelo Telescópio Espacial Hubble de uma região do aglomerado globular Messier 4. O céu não é totalmente recoberto por estrelas, mesmo nesta região tão densamente povoada (Imagem: NASA e H. Richer/Universidade de Colúmbia Britânica, Canadá)

Neste ponto da discussão é bastante útil a utilização de uma analogia. Suponhamos um observador no meio de uma extensa floresta. Cada árvore possui um diâmetro médio igual a “d” — 20 cm por exemplo. E as árvores estão separadas umas das outras por uma distância média “L” — 2 metros, por exemplo. Uma árvore ocupará, portanto, uma área média total “A”, igual a L vezes L. O observador não conseguirá enxergar nada além de uma distância “D” igual a A/d.

Teremos, portanto, em nosso exemplo acima, que, além de uma distância de 4/0,20=20 metros, a nossa visão será obstruída pelo que poderemos chamar de um “muro” de troncos de árvores. Esta distância é chamada de “distância de recobrimento”, ou, “limite de fundo”. A previsão teórica pode facilmente ser verificada numa floresta de verdade! E funciona!

Figura 2. Esta floresta não é grande o suficiente para que vejamos um “muro” de troncos ao fundo. Podemos discernir claramente faixas do céu. Se a floresta fosse mais densamente povoada de árvores e se os troncos fossem mais largos, a visão do céu de fundo poderia, eventualmente, ficar completamente bloqueada (Foto: Domingos Soares).

No caso do cosmos, temos ao invés de uma área “A”, um volume “V” médio, ocupada por uma estrela. Cada estrela apresenta para o observador um disco de área média “s”. Podemos então calcular a “distância de recobrimento” para este caso também. E que representará a distância na qual veríamos um céu recoberto, com a intensidade luminosa do disco solar. Esta distância vale, de forma análoga ao exemplo da floresta, V/s.

O inglês Edward Harrison (1919-2007), que foi professor emérito de Física e Astronomia da Universidade de Massachusetts, nos Estados Unidos, foi o responsável pela apresentação da solução definitiva do enigma da escuridão do céu noturno. Em um notável livro, intitulado “A escuridão da noite: um enigma do universo”, escrito em 1987 e publicado em português, em 1995, pela Jorge Zahar Editor Ltda., ele apresenta todos os detalhes históricos do problema, e discute as soluções propostas — um total de 15! A décima quinta é a solução que ele apresenta, e, a definitiva. A sua solução representa uma síntese do que há de correto em algumas das soluções apresentadas.

Entre os proponentes das soluções para o enigma encontram-se os já mencionados Kepler e Olbers, o físico inglês William Thomson (1824-1907) — lorde Kelvin —, e, surpreendentemente, um poeta e prosador, o americano Edgar Allan Poe (1809-1849).

Poe, também um cientista amador, publicou em 1848, um ano antes de sua morte, um ensaio intitulado “Eureka: A Prose Poem”, onde, entre outras coisas, ele apresenta a ideia — correta — de que o céu noturno não é brilhante porque a distância das estrelas de fundo é tão grande que a sua luz ainda não teve tempo de nos atingir, devido à velocidade finita da luz.

Lorde Kelvin foi mais além. Essencialmente, ele concorda com Poe. A sua importante contribuição é de natureza científica. Ao contrário de Poe, cujos argumentos são de caráter especulativo, ele mostrou, através de cálculos detalhados, que não só a velocidade finita da luz era um ingrediente importante na solução do enigma, mas que também a existência finita das estrelas era fundamental.

Harrison fez o cálculo do limite de fundo, para todo o universo, utilizando dados astronômicos atualizados, e encontrou uma distância de 100 bilhões de trilhões de anos-luz! Mesmo sendo esta distância tão grande, o universo pode ser maior, e poderíamos ter um céu “infernalmente” recoberto de luz. Por que, afinal de contas, isto não acontece? Como a idade média das estrelas é da ordem de 10 bilhões de anos — que, incidentemente, é a duração de “vida” prevista para o Sol — conclui-se que antes da sua luz nos atingir, ou seja, após percorrerem 10 bilhões de anos-luz, elas simplesmente deixam de emitir luz, por chegarem ao final de seu ciclo evolutivo.

A conclusão final de Harrison, e que sintetiza de forma bastante simples os cálculos de Kelvin, é de que não há energia suficiente no universo para que o céu se apresente excessivamente brilhante.

Ainda bem, para nós, humanos, e para toda a vida existente no planeta!

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