ATRAVÉS DO UNIVERSO: O princípio antrópico

O GEDAI publica o quadragésimo texto da série ATRAVÉS DO UNIVERSO – coluna mensal do prof. Domingos Soares (Departamento de Física / UFMG). Conheça mais sobre o autor em sua página eletrônica.

Domingos Soares

14 de junho de 2022

A origem deste princípio está nas ideias do físico teórico inglês Paul Dirac (1902-1984), o qual em 1937 propôs a hipótese das “coincidências dos grandes números”. Dirac chamou a atenção para o fato de que certos números adimensionais muito grandes e distintos tinham valores coincidentes. Por exemplo, o tamanho observável do universo, nos modelos relativistas do Estrondão, é da ordem de grandeza de

rU = cT,

onde c é a velocidade da luz e T é a idade do modelo adotado (aproximadamente o inverso da constante de Hubble). O chamado “raio clássico do elétron” é dado, no sistema de unidades CGS, por

re = e2/mc2,

onde e é a carga do elétron — e do próton — e m a sua massa de repouso. Este raio não representa uma grandeza física real, mas sim uma escala de distância que aparece em muitas expressões associadas ao elétron. Pois bem, a razão entre eles é o número adimensional da ordem de

rU/re = mc3T/e2 ∼ 1040.

Agora, a força eletromagnética entre um elétron e um próton, separados pela distância r, novamente expressa no sistema CGS, é dada por

FE = e2/r2.

E a força gravitacional, também entre o elétron e o próton, é:

FG = GmM/r2,

onde M é a massa do próton. De novo teremos um número adimensional muito grande, a saber, a razão

FE/FG = e2/GmM ∼ 1040.

Dirac raciocinou que esta coincidência não era sem motivo e que deveria significar algo. E ele propôs a hipótese de que, como a idade do universo T no numerador da primeira razão está aumentando, então, para que a coincidência fosse preservada, a constante gravitacional G deveria estar diminuindo, pois ela aparece no denominador da segunda razão.

Neste ponto, surge Brandon Carter, físico teórico australiano, atualmente trabalhando na França. Foi ele quem inventou e conceituou o termo “princípio antrópico” em um trabalho científico publicado em 1974 e apresentado no simpósio n. 63 da União Astronômica Internacional de 1973.

Brandon Carter, físico teórico australiano, cunhou o termo “princípio antrópico” e foi o primeiro a aplicá-lo em cosmologia.

Este trabalho intitula-se Large number coincidences and the anthropic principle in cosmology” e nele, já na introdução, afirma que a coincidência não significa que G está diminuindo, ou implica em qualquer outra ideia física exótica. Ele escreve o seguinte, a respeito das previsões de Dirac (o negrito é meu):

“(…) estas previsões requerem de fato o uso do que pode ser denominado ‘princípio antrópico’ para o efeito de que o que podemos esperar observar deve ser restrito pelas condições necessárias à nossa presença como observadores. (Apesar de que a nossa situação não é necessariamente central, ela é inevitavelmente privilegiada até certo ponto.)”

Ou seja, as coincidências ocorrem porque elas favorecem fenômenos físicos que levam à nossa existência como seres inteligentes, observadores da natureza. E que fenômenos ou processos físicos seriam estes? Aqueles, por exemplo, que levam à formação das estrelas e, além disto, permitem que nos interiores estelares sejam sintetizados os elementos químicos essenciais à existência da vida como nós a conhecemos, especialmente, a síntese do carbono.

A afirmação de Carter, mostrada acima, constitui o que é chamado de “versão fraca” do princípio. A “versão forte”, nas palavras do próprio Carter, estabelece que

“O universo (e por consequência os parâmetros fundamentais do qual ele depende) deve ser tal que admita a criação de observadores dentro dele em algum estágio.”

O princípio antrópico provou-se fecundo em provocar discussões em vários ramos da astrofísica e cosmologia. Existem várias formulações do princípio. De modo geral, pode-se expressá-lo afirmando que as constantes físicas da natureza são tais que permitem a existência de seres vivos baseados no carbono.

Brandon Carter teve toda a sua formação científica realizada no Reino Unido. Estudou na Universidade de Cambridge, onde obteve o doutorado em 1968, orientado pelo físico inglês Dennis Sciama (1926-1999). Continuou lá como pesquisador até 1973, quando fez a formulação do princípio antrópico. Tinha então 31 anos.

O cosmólogo brasileiro Prof. Mário Novello, pesquisador do Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas (CBPF), ao falar sobre o princípio, em um seminário no Departamento de Física da UFMG, no início dos anos 2000, ironizou dizendo que “o princípio antrópico estabelece que as constantes da natureza devem ser tais que permitam a existência de… ingleses”, uma crítica bem-humorada à proverbial arrogância dos bretões em vários ramos do conhecimento e atividade humanas.

A primeira vez em que ouvi falar do princípio antrópico foi na reunião anual de 1990 da Sociedade Astronômica Brasileira. Naquela ocasião, o Prof. Oscar Matsuura, astrônomo, atualmente aposentado, do Departamento de Astronomia (IAG/USP), proferiu um seminário na abertura da reunião sobre este tema. Lembro-me de ter ficado vividamente impressionado com as ideias que o Prof. Oscar apresentou. O princípio antrópico pareceu-me algo extraordinário. Com o passar dos anos, e um maior aprofundamento nas ideias originais de Brandon Carter, acabei por desenvolver uma atitude bastante crítica a respeito do princípio. Considero o princípio antrópico como específico da vida como a temos, sendo nada mais do que um de infinitos princípios análogos, relacionados a outros tipos possíveis de vida; estas ideias foram expostas em mais detalhes no artigo “The Aleph cosmological principle”, disponível para leitura abaixo.

Em 2009, o meu ex-aluno de cosmologia Victor Comitti realizou um estudo de graduação, sob minha orientação, intitulado “Princípio antrópico cosmológico”. Nele, Victor esmiuça vários aspectos do princípio, realizando um ótimo trabalho, que acabou por ser aceito para a Revista Brasileira de Ensino de Física, uma publicação da Sociedade Brasileira de Física. O artigo é referência essencial para quem quiser se iniciar nos fundamentos do princípio antrópico e está também disponível abaixo.

O princípio permanece como discurso intrigante e desencadeador de discussões acaloradas, e merece por isto que o conheçamos. Concordando ou não com ele, sairemos sempre enriquecidos de sua investigação.

Um pouco mais:


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FLORESTA COSMOS
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