ATRAVÉS DO UNIVERSO: Recenseamento de galáxias

O GEDAI publica o trigésimo quinto texto da série ATRAVÉS DO UNIVERSO, coluna mensal do prof. Domingos Soares (Departamento de Física / UFMG). Conheça mais sobre o autor em sua página eletrônica.

Recenseamento de galáxias

Domingos Soares

14 de setembro de 2021

Como se distribuem as galáxias no universo? O Princípio Cosmológico estabelece que o universo é homogêneo e isotrópico em sua distribuição de massa. Mas será esta suposição rigorosamente válida?

Esta questão pode ser atacada através do recenseamento de galáxias no universo, pois são elas que delineiam a sua estrutura em grande escala. E os recenseamentos já realizados mostram que, ao contrário do que postula o Princípio Cosmológico, o universo não é perfeitamente homogêneo em grande escala.

O recenseamento de Shane e Wirtanen

Entre os anos 1947 e 1954, dois astrônomos estadunidenses, Charles Donald Shane (1895-1983) e Carl Alvar Wirtanen (1910-1990), resolveram procurar a resposta para estas perguntas e realizaram o primeiro grande levantamento de galáxias no universo próximo. Eles utilizaram o telescópio refletor Crossley de 90 cm de abertura do Observatório Lick, que está localizado no estado da Califórnia, Estados Unidos, no Monte Hamilton. O recenseamento das galáxias foi feito utilizando placas fotográficas — os astrônomos só começariam a utilizar detectores eletrônicos digitais (como os CCDs) no início dos anos 1980.

Shane e Wirtanen obtiveram 1.256 registros de todo o céu boreal em placas fotográficas de vidro de 10×10 cm2. Depois eles dividiram o céu fotografado em células de 10 minutos de arco (um terço do diâmetro da Lua cheia) e contaram o número de galáxias em cada célula até a magnitude 19. Segundo a estimativa de Shane e Wirtanen, esta magnitude limite corresponde a alguns bilhões de anos-luz de distância, que é, portanto, a profundidade de seu levantamento. Eles contabilizaram o registro de mais de um milhão de galáxias.

O Levantamento Shane-Wirtanen de galáxias foi popularizado no final da década de 1970 pelo físico P.J.E. Peebles e seus estudantes e colaboradores da Universidade de Princeton, Estados Unidos. Além de realizarem um estudo quantitativo detalhado da distribuição das galáxias na região amostrada, eles utilizaram as observações de Shane e Wirtanen para produzir um poster, que se tornou bastante popular na época, e foi denominado “One Million Galaxies”, e está reproduzido abaixo.

Uma imagem vale mais do que mil palavras (números, no caso): reprodução do poster One Million Galaxies. Este poster popularizado no final da década de 1970 é hoje peça de colecionador. Os dados utilizados em sua confecção foram úteis para se determinar quantitativamente como se distribuem as galáxias no universo próximo. Filamentos e vazios destacam-se na distribuição geral das galáxias.

Cada célula de 10 minutos de arco aparece em branco ou em uma tonalidade de cinza, dependendo do número de galáxias presentes naquela célula. Os aglomerados de galáxias aparecem na forma de regiões mais claras e os vazios como regiões escuras.

O resultado importante do levantamento de Shane e Wirtanen é que as galáxias não estão distribuídas de forma aleatória, mas se aglomeram em estruturas gravitacionalmente ligadas, as quais vão desde pares até grandes aglomerados e superaglomerados de galáxias. O trabalho de Shane e Wirtanen e de Peebles e seus colaboradores teve um impacto extraordinário entre os astrônomos extragalácticos e cosmólogos da época e permanece como estímulo científico até os dias atuais.

O Princípio Cosmológico é, portanto, nada mais do que uma aproximação à realidade. A sua utilização nas aplicações teóricas da cosmologia, especialmente da Teoria da Relatividade Geral (TRG), é motivada pela enorme simplificação das equações cosmológicas que ele proporciona.

O recenseamento 2MASS

O resultado obtido pelo Levantamento Shane-Wirtanen foi confirmado posteriormente por um outro recenseamento de galáxias, e que, diferentemente do de Shane e Wirtanen, cobriu toda a esfera celeste. Trata-se do 2MASS, sigla que significa, em inglês, Two Micron All Sky Survey (em português, Censo de Todo o Céu em Dois Mícrons).

O 2MASS utilizou detectores digitais para observar três bandas do infravermelho próximo. Estas bandas possuem comprimentos de onda centrais em torno de 2 mícrons, ou seja, 20.000 angstroms. As bandas são centradas em 1,2 mícron, 1,6 mícron e 2,2 mícrons, codificadas nas cores azul, verde e vermelho, respectivamente. O levantamento de Shane e Wirtanen foi feito no azul (banda B, centrada em 4.400 angstroms) e no visual (banda V, centrada em 5.400 angstroms). A radiação eletromagnética nas bandas do infravermelho próximo tem a vantagem de ser menos absorvida pela poeira interstelar e intergaláctica do que a radiação de comprimentos de onda no espectro visível (como as bandas B e V usadas por Shane e Wirtanen).

Foram utilizados dois telescópios automatizados de 1,3 m de abertura. Um deles está no Monte Hopkins, no estado do Arizona, nos Estados Unidos, e o outro no Observatório Interamericano de Cerro Tololo, no Chile. O 2MASS boreal começou a operar em junho de 1997 e o setentrional em março de 1998. Ambos terminaram as operações em 15 de fevereiro de 2001. O resultado do levantamento está mostrado na imagem abaixo, cujas cores das bandas infravermelhas obedecem a codificação mencionada anteriormente.

Este planisfério representa toda a esfera celeste. A faixa azul que corta verticalmente a imagem e se estende para a direita, na parte superior, e para a esquerda, na parte inferior, é a Via Láctea. Nesta faixa nota-se uma pequena diminuição do número de galáxias devido à absorção da poeira interestelar presente na Via Láctea, mesmo sendo as observações feitas no infravermelho próximo. Há 1,6 milhão de galáxias na imagem.

Os levantamentos de galáxias e outros objetos cósmicos no universo continuam sendo realizados, tanto através de telescópios baseados em terra quanto através de observatórios espaciais. Estes levantamentos são importantes para, entre outras coisas, colocar limites nas teorias de formação e evolução do universo.

Centenas de bilhões de galáxias

Os resultados descritos acima são extraordinários, mas devemos colocá-los em sua devida perspectiva. Este milhão e pouco mais de galáxias representa uma parcela minúscula do universo accessível aos nossos observatórios, especialmente aos nossos observatórios espaciais. O Telescópio Espacial Hubble realizou alguns recenseamentos profundos de galáxias em vários campos celestes. Tais campos são minúsculas regiões do céu, todos eles com uma área igual a cerca de um centésimo da área que a Lua cheia nos oferece. A contagem de galáxias nestas áreas indica que o universo tem pelo menos 125 bilhões de galáxias! “Pelo menos”, porque a contagem depende da profundidade do levantamento realizado. E esta profundidade pode ser, no futuro, ainda maior do que as dos levantamentos do Telescópio Espacial Hubble, os quais representam os nossos limites atuais.

Um pouco mais:


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Domingos Soares
FLORESTA COSMOS
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